Bulas de Medicamentos com Patentes em Vigor e Bulas de Medicamentos Genéricos

February 29, 2024

Certamente o uso de medicamentos é essencial para prolongar nossa sobrevivência com a maior qualidade de vida possível, alinhada ao avanço da ciência. Por isso, as bulas de medicamentos são familiares a todos, independentemente de pertencerem ou não ao segmento farmacêutico. Não pode se dizer o mesmo sobre os conceitos de medicamentos genéricos e medicamentos com patentes em vigor (com proteção patentária).

Medicamentos com patentes em vigor são medicamentos inovadores (também denominados produtos ou medicamentos de referência) cujo depositante, sendo em regra o fabricante, obteve o deferimento de um título de propriedade temporário (patente) pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), no Brasil. Esse título permite ao depositante explorar e comercializar com exclusividade a sua invenção pelo prazo de 20 anos, contados da data do depósito inicial do pedido no INPI, conforme preconiza a Lei 9.279/76.

Medicamentos genéricos foram regulamentados no Brasil por meio da Lei 9.787/99 . Por definição, compreende um medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que pretende ser com este intercambiável. São geralmente produzidos após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, sendo comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB (denominação comum brasileira = denominação do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo aprovada pelo órgão federal responsável pela vigilância sanitária) ou, na sua ausência, pela DCI (denominação comum internacional = denominação do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo recomendada pela Organização Mundial de Saúde).

O Brasil ainda permite, sob regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a comercialização de medicamentos similares. Esses se diferem dos medicamentos genéricos por usarem uma marca, ao passo que os medicamentos genéricos utilizam apenas a DCB, ou seja, o princípio ativo, sendo vedada a utilização de marcas. A convergência entre os medicamentos genéricos e os medicamentos similares é que só podem ser comercializados, quando não houver a proteção patentária do medicamento inovador ou de referência.

É importante salientar que se o INPI é a autarquia responsável por registrar patentes, marcas e desenhos industriais no Brasil, a Anvisa é a autarquia especial responsável por registrar e monitorar a comercialização dos referidos medicamentos, seja aqueles com patentes, genéricos ou similares. Detalhe importante é que o INPI nunca interferiu na atuação da Anvisa para a concessão ou não de um registro de medicamento, mas a Anvisa interferia na atuação do INPI para a concessão ou não de uma patente, por força do Art. 229-C da Lei 9.279/76, em ato outrora conhecido como anuência prévia. Todavia, a Lei 14.195/01 revogou o referido dispositivo, buscando acelerar a avaliação de mais de 1000 pedidos de patentes de medicamentos represados à época.

1.1. O papel da bula de medicamentos

A bula de medicamentos, conforme estabelece o Ministério da Saúde, é um documento legal sanitário que traz orientações sobre o modo de uso de medicamentos. Além disso, constituí imprescindível ferramenta de orientação para pacientes e profissionais de saúde, já que a mesma deve conter informações sobre:

ELEMENTOS DE UMA BULA

1. Prescrição

2. Preparação

3. Administração

4. Advertência

5. Orientações para o Uso Seguro e o Tratamento Eficaz

As bulas de medicamentos são previstas na Lei 6.360/76, que define normas de regulação para o setor farmacêutico. A despeito disso, as bulas são regulamentadas pela Resolução RDC 47/2009 da Anvisa, que conseguiu detalhar todos os aspectos técnicos e regulamentares para a criação de uma bula de medicamento.

Além disso, o conceito de bula em papel evoluiu, tendo sido criadas as bulas especiais para os portadores de deficiências visuais, podendo ser (i) em áudio ou em texto, com formato passível de conversão para áudio, utilizando meio magnético, meio óptico, meio eletrônico ou serviços e recursos da internet, (ii) impressas em Braille ou (iii) impressas com fonte ampliada. Foi também criado o bulário eletrônico pela Anvisa, sendo finalmente regulamentada a bula digital por meio da Lei 14.338/22.

1.2. A bula de medicamentos e a controvérsia do skinny labeling

A Resolução RDC 47/2009 define a “bula padrão” como: o padrão de informação para harmonização das bulas de medicamentos específicos, fitoterápicos, genéricos e similares, cujos textos são publicados no bulário eletrônico. Para os medicamentos específicos e fitoterápicos, as bulas padrão são elaboradas pela Anvisa. Para os medicamentos genéricos e similares, as bulas padrão são as bulas dos medicamentos eleitos como medicamentos de referência e contém todas as informações decorrentes de todos os estudos clínicos feitos pelo ou para o fabricante. Dessa forma, as bulas dos medicamentos genéricos deveriam refletir integralmente o disposto nas bulas dos medicamentos inovadores ou de referência, geralmente sob a proteção de uma patente.

Entretanto, a partir daí iniciou-se uma enorme controvérsia, já que a bula dos medicamentos genéricos deveria espelhar a bula dos medicamentos inovadores ou de referência.

Segundo estudos realizados, a indústria farmacêutica de pesquisa despende anos e chega a gastar até US$ 4.2 bilhões de dólares em pesquisas pré-clínicas e clínicas. Tudo isso para chegar a uma nova molécula que traga valor agregado à vida ou ao bem-estar do paciente, que tenha um perfil de segurança aceitável e que seja rentável comercialmente. Em contrapartida, a patente que garantirá a exclusividade na comercialização só vale por 20 anos a contar da data do depósito no INPI, não da data da aprovação do referido pedido de patente, o que reduz significativamente a referida proteção patentária.

Por outro lado, a indústria de genéricos, que aguarda ansiosamente o término da proteção patentária, tenta abreviar ao máximo a comercialização do produto, pois precisa de volume de vendas elevado para compor sua receita, uma vez que a sua margem de lucro é significativamente menor. Mas o que isso tem a ver com a bula do medicamento?

É simples. Alguns medicamentos possuem patentes de segundo uso, o que significa que o produto possui mais de uma patente, sendo cada uma delas para um uso específico. Por vezes, uma dessas patentes expira, mas a segunda patente continua em vigor. Frente a isso, alguns detentores de medicamentos genéricos costumam eliminar qualquer referência às indicações terapêuticas que ainda estejam sendo protegidas pela segunda patente, ainda em vigor. Assim, buscam justificar a comercialização do referido medicamento, alegando a não infração da patente.

Esta prática é conhecida como “skinny labeling”, “skinny label” ou “carving out” e tal conceito violaria, em princípio, a necessidade de harmonização com a bula do medicamento inovador ou de referência. Aliás, não é a toa que qualquer mudança nas bulas dos medicamentos inovadores ou de referência deve ser refletida nas bulas dos medicamentos genéricos ou similares. O prazo para isso é de até 180 dias, conforme estabelece a Resolução RDC 73/2016 da Anvisa.

1.3. ANVISA altera a regulação da harmonização das bulas

Em 11 de dezembro de 2023, após a Consulta Pública 1.137/2022, a Anvisa publicou a Resolução RDC 831/2023, datada de 06 de dezembro de 2023, cuja vigência se iniciou em 08 de fevereiro de 2024. Tal Resolução trouxe uma significativa alteração na Resolução RDC 47/2009, criando especialmente o novo conteúdo para os parágrafos terceiro e quarto do Artigo 14 e determinando que as bulas dos medicamentos genéricos e similares podem diferir das suas respectivas bulas padrão em relação a indicações protegidas por patente ou reivindicadas em pedidos de patente publicados. Nessa hipótese, as bulas dos medicamentos genéricos e similares que diferirem das suas respectivas bulas padrão em relação a indicações protegidas por patente ou reivindicadas em pedidos de patente publicados devem incluir a frase “Foram suprimidas as informações que se referem às indicações do medicamento protegidas por patente.”, em negrito, inserida na seção “1. PARA QUE ESTE MEDICAMENTO É INDICADO?” da bula do paciente e “1. INDICAÇÕES” da bula do profissional de saúde.

Com tal atitude, a Anvisa reconheceu a possibilidade do skinny labeling, a despeito de todas as críticas e da controvérsia global em torno do tema, que incluem posicionamentos jurídicos absolutamente contrários a tal prática.

Aliás, o argumento da Anvisa para tal iniciativa foi não apenas considerar a consulta pública acima citada, mas também alegar que tal iniciativa ampliaria o acesso da população ao referido medicamento, já que permitiria mais de uma opção para aquela determinada indicação terapêutica, não mais protegida pela patente.

Essa decisão da Anvisa, coloca novamente em confronto o deferimento das patentes de segundo uso e a prática do skinny labeling. Considerando a hierarquia entre normas legais e infra-legais, é provável que essa questão continue a gerar considerável discussão nos tribunais brasileiros, até que a jurisprudência se consolide a respeito.

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Medicamentos com patentes em vigor são medicamentos inovadores (também denominados produtos ou medicamentos de referência) cujo depositante, sendo em regra o fabricante, obteve o deferimento de um título de propriedade temporário (patente) pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), no Brasil. Esse título permite ao depositante explorar e comercializar com exclusividade a sua invenção pelo prazo de 20 anos, contados da data do depósito inicial do pedido no INPI, conforme preconiza a Lei 9.279/76.

Medicamentos genéricos foram regulamentados no Brasil por meio da Lei 9.787/99 . Por definição, compreende um medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que pretende ser com este intercambiável. São geralmente produzidos após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, sendo comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB (denominação comum brasileira = denominação do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo aprovada pelo órgão federal responsável pela vigilância sanitária) ou, na sua ausência, pela DCI (denominação comum internacional = denominação do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo recomendada pela Organização Mundial de Saúde).

O Brasil ainda permite, sob regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a comercialização de medicamentos similares. Esses se diferem dos medicamentos genéricos por usarem uma marca, ao passo que os medicamentos genéricos utilizam apenas a DCB, ou seja, o princípio ativo, sendo vedada a utilização de marcas. A convergência entre os medicamentos genéricos e os medicamentos similares é que só podem ser comercializados, quando não houver a proteção patentária do medicamento inovador ou de referência.

É importante salientar que se o INPI é a autarquia responsável por registrar patentes, marcas e desenhos industriais no Brasil, a Anvisa é a autarquia especial responsável por registrar e monitorar a comercialização dos referidos medicamentos, seja aqueles com patentes, genéricos ou similares. Detalhe importante é que o INPI nunca interferiu na atuação da Anvisa para a concessão ou não de um registro de medicamento, mas a Anvisa interferia na atuação do INPI para a concessão ou não de uma patente, por força do Art. 229-C da Lei 9.279/76, em ato outrora conhecido como anuência prévia. Todavia, a Lei 14.195/01 revogou o referido dispositivo, buscando acelerar a avaliação de mais de 1000 pedidos de patentes de medicamentos represados à época.

1.1. O papel da bula de medicamentos

A bula de medicamentos, conforme estabelece o Ministério da Saúde, é um documento legal sanitário que traz orientações sobre o modo de uso de medicamentos. Além disso, constituí imprescindível ferramenta de orientação para pacientes e profissionais de saúde, já que a mesma deve conter informações sobre:

ELEMENTOS DE UMA BULA

1. Prescrição

2. Preparação

3. Administração

4. Advertência

5. Orientações para o Uso Seguro e o Tratamento Eficaz

As bulas de medicamentos são previstas na Lei 6.360/76, que define normas de regulação para o setor farmacêutico. A despeito disso, as bulas são regulamentadas pela Resolução RDC 47/2009 da Anvisa, que conseguiu detalhar todos os aspectos técnicos e regulamentares para a criação de uma bula de medicamento.

Além disso, o conceito de bula em papel evoluiu, tendo sido criadas as bulas especiais para os portadores de deficiências visuais, podendo ser (i) em áudio ou em texto, com formato passível de conversão para áudio, utilizando meio magnético, meio óptico, meio eletrônico ou serviços e recursos da internet, (ii) impressas em Braille ou (iii) impressas com fonte ampliada. Foi também criado o bulário eletrônico pela Anvisa, sendo finalmente regulamentada a bula digital por meio da Lei 14.338/22.

1.2. A bula de medicamentos e a controvérsia do skinny labeling

A Resolução RDC 47/2009 define a “bula padrão” como: o padrão de informação para harmonização das bulas de medicamentos específicos, fitoterápicos, genéricos e similares, cujos textos são publicados no bulário eletrônico. Para os medicamentos específicos e fitoterápicos, as bulas padrão são elaboradas pela Anvisa. Para os medicamentos genéricos e similares, as bulas padrão são as bulas dos medicamentos eleitos como medicamentos de referência e contém todas as informações decorrentes de todos os estudos clínicos feitos pelo ou para o fabricante. Dessa forma, as bulas dos medicamentos genéricos deveriam refletir integralmente o disposto nas bulas dos medicamentos inovadores ou de referência, geralmente sob a proteção de uma patente.

Entretanto, a partir daí iniciou-se uma enorme controvérsia, já que a bula dos medicamentos genéricos deveria espelhar a bula dos medicamentos inovadores ou de referência.

Segundo estudos realizados, a indústria farmacêutica de pesquisa despende anos e chega a gastar até US$ 4.2 bilhões de dólares em pesquisas pré-clínicas e clínicas. Tudo isso para chegar a uma nova molécula que traga valor agregado à vida ou ao bem-estar do paciente, que tenha um perfil de segurança aceitável e que seja rentável comercialmente. Em contrapartida, a patente que garantirá a exclusividade na comercialização só vale por 20 anos a contar da data do depósito no INPI, não da data da aprovação do referido pedido de patente, o que reduz significativamente a referida proteção patentária.

Por outro lado, a indústria de genéricos, que aguarda ansiosamente o término da proteção patentária, tenta abreviar ao máximo a comercialização do produto, pois precisa de volume de vendas elevado para compor sua receita, uma vez que a sua margem de lucro é significativamente menor. Mas o que isso tem a ver com a bula do medicamento?

É simples. Alguns medicamentos possuem patentes de segundo uso, o que significa que o produto possui mais de uma patente, sendo cada uma delas para um uso específico. Por vezes, uma dessas patentes expira, mas a segunda patente continua em vigor. Frente a isso, alguns detentores de medicamentos genéricos costumam eliminar qualquer referência às indicações terapêuticas que ainda estejam sendo protegidas pela segunda patente, ainda em vigor. Assim, buscam justificar a comercialização do referido medicamento, alegando a não infração da patente.

Esta prática é conhecida como “skinny labeling”, “skinny label” ou “carving out” e tal conceito violaria, em princípio, a necessidade de harmonização com a bula do medicamento inovador ou de referência. Aliás, não é a toa que qualquer mudança nas bulas dos medicamentos inovadores ou de referência deve ser refletida nas bulas dos medicamentos genéricos ou similares. O prazo para isso é de até 180 dias, conforme estabelece a Resolução RDC 73/2016 da Anvisa.

1.3. ANVISA altera a regulação da harmonização das bulas

Em 11 de dezembro de 2023, após a Consulta Pública 1.137/2022, a Anvisa publicou a Resolução RDC 831/2023, datada de 06 de dezembro de 2023, cuja vigência se iniciou em 08 de fevereiro de 2024. Tal Resolução trouxe uma significativa alteração na Resolução RDC 47/2009, criando especialmente o novo conteúdo para os parágrafos terceiro e quarto do Artigo 14 e determinando que as bulas dos medicamentos genéricos e similares podem diferir das suas respectivas bulas padrão em relação a indicações protegidas por patente ou reivindicadas em pedidos de patente publicados. Nessa hipótese, as bulas dos medicamentos genéricos e similares que diferirem das suas respectivas bulas padrão em relação a indicações protegidas por patente ou reivindicadas em pedidos de patente publicados devem incluir a frase “Foram suprimidas as informações que se referem às indicações do medicamento protegidas por patente.”, em negrito, inserida na seção “1. PARA QUE ESTE MEDICAMENTO É INDICADO?” da bula do paciente e “1. INDICAÇÕES” da bula do profissional de saúde.

Com tal atitude, a Anvisa reconheceu a possibilidade do skinny labeling, a despeito de todas as críticas e da controvérsia global em torno do tema, que incluem posicionamentos jurídicos absolutamente contrários a tal prática.

Aliás, o argumento da Anvisa para tal iniciativa foi não apenas considerar a consulta pública acima citada, mas também alegar que tal iniciativa ampliaria o acesso da população ao referido medicamento, já que permitiria mais de uma opção para aquela determinada indicação terapêutica, não mais protegida pela patente.

Essa decisão da Anvisa, coloca novamente em confronto o deferimento das patentes de segundo uso e a prática do skinny labeling. Considerando a hierarquia entre normas legais e infra-legais, é provável que essa questão continue a gerar considerável discussão nos tribunais brasileiros, até que a jurisprudência se consolide a respeito.

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